Qualidade em Serviços de Saúde
Desde meados dos anos 90 do século passado a qualidade e a sua certificação ganharam uma crescente importância no setor da saúde, sendo consensual a sua relevância.
Através deste texto pretendemos refletir sobre o conceito de qualidade e a sua aplicabilidade aos serviços de saúde no contexto de Portugal.
O caráter universal da qualidade
Os conceitos e princípios da qualidade são de aplicação universal a todo e qualquer setor de atividade económica, existindo um organismo internacional que rege a qualidade, International Organization for Standardization (ISO), o qual está para a área da qualidade como a Organização Mundial de Saúde (OMS) está para a área da saúde.
Conceito de qualidade (total) e princípios de gestão da qualidade
Já desde os anos 90 do século passado que é proposto o conceito de qualidade total. Por que motivo se adjetiva a qualidade de total? Antes de mais, a qualidade diz-se total por pressupor a necessidade de envolvimento de toda a organização e de todos os seus colaboradores (não somente os responsáveis pelas diferentes áreas), mas igualmente por visar alcançar a satisfação de todas as necessidades de todos os clientes/utentes em todo o momento. Se o envolvimento de toda a organização e de todos os colaboradores é aceite de forma pacífica, já a ambição de vir a satisfazer todas as necessidades de todos os clientes/utentes em todo o momento é muitas vezes considerada utópica. Contudo, o conceito de qualidade total pressupõe uma cultura de excelência associada à ambição acima referida.
A metáfora do barco e da linha do horizonte poderá ajudar as organizações a assumir a qualidade total como desígnio. Consideremos um barco na Foz do Douro na cidade do Porto, o qual na nossa metáfora corresponde à unidade de saúde, enquanto a linha do horizonte representa a qualidade total. A unidade de saúde pode assumir como seu desígnio “manter o barco à tona”, evitando que o mesmo encalhe nas formações rochosas do mar da Foz ou pelo contrário pode assumir como desígnio e vocação alcançar a linha do horizonte, ou seja alcançar a qualidade total; sabemos que a linha do horizonte é inalcançável, tal como é inalcançável a total satisfação de todos os clientes/utentes sempre, mas quando as organizações assumem de forma consequente este desígnio, ainda que não o atinjam de forma plena, chegam perto do mesmo e são reconhecidas como um exemplo de excelência. Esta é a filosofia inerente à gestão pela qualidade total.
A propósito refira-se o Prémio de Excelência – Sistema Português da Qualidade (PEX-SPQ) instituído pelo Instituto Português da Qualidade (IPQ), o qual constitui uma distinção atribuída às organizações que se destaquem na aplicação dos métodos de Gestão pela Qualidade Total no Caminho da Excelência e nos resultados alcançados.
Vamos agora apresentar o conceito de qualidade proposto pela ISO no âmbito da norma ISO 9000:2015 “Sistemas de Gestão da Qualidade – Fundamentos e Vocabulário”, na qual se refere:
“Uma organização focada na qualidade promove uma cultura que se traduz em comportamentos, atitudes, atividades e processos que proporcionam valor ao satisfazer as necessidades e as expectativas dos clientes e de outras partes interessadas relevantes.”
Ainda no âmbito da Norma ISO 9000 é referido que “A qualidade dos produtos e serviços inclui não só as funções e o desempenho pretendidos, mas também os correspondentes valor percecionado e benefício para o cliente”.
Particularmente importante na revisão em 2015 do conceito ISO de qualidade, o facto de pela primeira vez ser feita uma referência expressa à cultura, pois com efeito a qualidade deve assentar em dois pilares, o pilar da cultura da qualidade e o pilar do sistema de gestão da qualidade.
A cultura da qualidade traduz-se na orientação para o cliente/utente, na procura da excelência, no rigor e exigência em tudo o que se faz e na capacidade de reconhecer as não conformidades e promover a sua gestão, não sendo compatível com uma cultura organizacional que muitas vezes não reconhece o erro ou que ainda que o reconheça, tende a desvalorizá-lo com recurso a adágios populares tais como “ossos do ofício”, “quem anda à chuva molha-se” e “no melhor pano cai a nódoa”. Com efeito, sem uma efetiva cultura da qualidade, podemos em jeito de imagem referir que a qualidade está “coxa” ao assentar somente no pilar do sistema de gestão da qualidade e da sua certificação; se porventura a obtenção da certificação for vista pela organização como um fim e não como um meio, tenderá a ocorrer a sua instrumentalização, tornando-se o cenário ainda menos promissor.
Quer isto dizer que a qualidade e a sua certificação deverão assentar numa forte cultura da qualidade assumida e promovida pela organização e num sistema de gestão da qualidade solidamente ancorado nos sete princípios de gestão da qualidade (enunciados na norma ISO 9001):
- Foco no cliente
“O foco primordial da gestão da qualidade é posto na satisfação dos requisitos dos clientes e no esforço por exceder as suas expetativas.” - Liderança
“Os líderes estabelecem a todos os níveis, unidade no propósito e na orientação e criam as condições para que as pessoas se comprometam no atingir dos objetivos da organização.” - Comprometimento das pessoas
“Para a melhoria da capacidade da organização para criar e disponibilizar valor, é essencial que em todos os níveis da organização haja pessoas competentes, a quem tenham sido conferidos poderes e que estejam comprometidas.” - Abordagem por processos
“Resultados consistentes e previsíveis podem ser mais eficaz e eficientemente atingidos quando as atividades são compreendidas e geridas como processos inter-relacionados que funcionam como um sistema coerente.” - Melhoria
“As organizações que têm sucesso estão permanentemente focadas na melhoria.” - Tomada de decisão baseada em evidências
“As decisões baseadas na análise e na avaliação de dados e de informação são mais suscetíveis de produzir resultados desejados.” - Gestão das relações
“Para terem sucesso sustentado, as organizações gerem as suas relações com partes interessadas, como sejam os fornecedores.”
Certificação da qualidade em saúde em Portugal
A certificação de unidades de saúde em Portugal enquadra-se na Estratégia Nacional para a Qualidade na Saúde, no âmbito da qual é estabelecido o Programa Nacional de Acreditação em Saúde (PNAS).
A certificação de unidades de saúde é uma atribuição do Departamento da Qualidade na Saúde (DQS) da Direção-Geral da Saúde (DGS) e assenta em referenciais da qualidade em saúde da Agencia de Calidad Sanitaria de Andalucia (ACSA), os quais naturalmente obedecem aos princípios orientadores da ISO.
A certificação pode ser desenvolvida com base em nove referenciais estabelecidos nos seguintes manuais de standards:
• Manual de Standards – Gestão Clínica
• Manual de Standards – Hospitais
• Manual de Standards – Unidades de Saúde Sem Internamento
• Manual de Standards – Unidades de Urgência e Emergência
• Manual de Standards – Laboratórios Clínicos
• Manual de Standards – Instituições de Saúde/Centros Hospitalares
• Manual de Standards – Unidades de Sangue
• Manual de Standards – Unidades de Diagnóstico Radiológico
• Manual de Standards – Unidades de Saúde de Ambulatório
Todos os documentos acima referidos estão disponíveis no website da DGS.
Refira-se que em 30/11/2021 eram 277 as unidades de saúde certificadas segundo o Modelo de Certificação do Ministério da Saúde.
Por fim, referir que a adoção dos manuais de standards permite às unidades de saúde níveis acrescidos de eficácia (efetividade) e de eficiência (otimização da utilização dos recursos disponíveis), contribuindo para o reforço da sua capacidade de prestação de serviços orientados para o cliente/utente, dentro dos parâmetros a que se propõem, de forma consistente e continuada no tempo e otimizando o seu custo.
Luís Cardia
Formador em Qualidade em Serviços de Saúde